segunda-feira, 17 de agosto de 2009

Aventuras de um Estagiário - 3

Fiquei viajando nesse negócio de ser chamado de doutor. Por que ele me chamou de doutor? Eu nunca defendi nenhuma tese - as únicas que eu defendo são em discussões em mesas de bar, nada acadêmico. Eu usava uma gravata cinza e um paletó preto. Talvez isso, por si só, faça com que eu adquira esse título. "Doutor Márcio Azevedo", estaria escrito na porta de entrada do meu escritório. Melhor: "Dr. Azevedo". O doutor abreviado e só com o sobrenome dá um ar mais maduro. Os clientes vão me procurar pensando se tratar de um advogado com cabelos brancos e vasta experiência. Vão quebrar a cara. Durante quarenta anos vão quebrar a cara até que eu tenha a aparência necessária. Uma gravata no pescoço dá status. Tive a idéia de pegar um mendigo e deixá-lo na beca e colocá-lo pra fazer uma audiência. Depois ele iria num restaurante chique, tomaria whisky, comeria lagosta e transaria com uma gostosa que nunca daria pra ele nas CNTP. Acho que todo mundo deveria poder fazer isso algum dia.

Enquanto eu tava com essa idéia na cabeça, saiu um grupo de quatro pessoas, dois homens e duas mulheres, o que interrompeu meu pensamento. Eles estavam rindo. Já estava há duas horas ali e não os tinha visto. Eram, com certeza, os funcionários que tinham terminado o culto a Satã regado a muito crack e cérebros de crianças e estavam indo pras suas casas curtir a sexta-feira na bruxa, felizes da vida. Nem olharam pra dúzia de pessoas que estava ali. Estavam distraídos. Imagine. Pessoas com seus direitos ali, nos armários: suas indenizações, o dinheiro que deveria ter recebido, a angústia sofrida, o dano moral, patrimonial, tanta coisa. Mas eles não tão nem aí. Não tão dando a mínima pra porra nenhuma. Aqueles processos são um monte de papel velho e não significam nada. Ah, sim, significam! significam trabalho. Coisa que ninguém quer. Nem eu quero. Se eu não quero, imagine os servidores. Eles querem passar a tarde batendo papo e fazendo homenagens a um deus com chifre e rabo (sim, um deus, porque pra bater testa com Deus, acho que só outro deus, senão seria uma briga desleal e não teria nenhum sentido essa coisa toda. Afinal, qual a graça de ter Deus sem ter o diabo? Um não teria razão de existir sem o outro). Eu também preferiria isso se acreditasse. Eu mesmo poderia estar na praia fumando maconha e bebendo cerveja com meus amigos, mas tava ali. Somos como Deus e o diabo. Ambos se odeiam, mas precisam um do outro. Estagiários e servidores, Deus e diabo. Quem corresponde a quem? Bem e mal. Eu quero ser do bem, mas o mal também é legal. Deus é do bem? O diabo todo mundo sabe que não é, mas Deus. Ele criou um mundo insano e colocou nele os seres mais insanos, os humanos. Os humanos gostam de brigar, se odeiam entre si, fazem bombas e se matam. "Que tédio. Quero ver um pouco de ação. Vou criar esses seres que andam em pé e comem sentados pra ver como eles se comportam. Ah, vou deixar eles pensarem, também, só pra ver no que dá. Vai ser divertido", foi o que Deus pensou ao nos criar. Conclusão: prefiro ser Deus. Então fica assim, os estagiários são como Deus e os servidores públicos estaduais como o diabo que fica atrapalhando nossos planos. Lembra também as Tartarugas Ninja e o Destruidor.

Aquela cena dos funcionários saindo do serviço me fez ir embora pro escritório. Eu me sentia o próprio Josef K.

Continua...

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