sexta-feira, 14 de agosto de 2009

Aventuras de um Estagiário - 2

No cartório fazia calor. Dois ventiladores enormes expeliam um vento quente. Eu, que já tava um pouco úmido, comecei a suar no sovaco e no peito, depois nos braços - tenho sudorese, então minhas mãos vivem suadas. Uns cinco caras apoiados no balcão e mais cerca de dez pessoas sentadas em cadeiras aparentemente confortáveis esperavam pacientemente caladas por um atendimento de viv'alma.

Do outro lado do balcão, ainda havia alguns que, um pouco impacientes, aguardavam qualquer serventuário. Encontrei meu amigo Carlos. Um cara gente boa até.

- E aí, man. Essa é a trigésima vara, né? - perguntei só pra puxar assunto com ele, um cara legal.
- Aqui mermo. Welcome to the jungle. Pegue sua senha.

Peguei o número cento e trinta e um.

- Tá em que número?
- Noventa e sete.
- Qual o seu?
- Cento e dezessete.
- Puta que pariu.

Sentei e comecei a ler um livro que tinha levado. A Arte de Escrever. Se alguns autores de direito lessem isso, se jogariam num precipício (só alguns, ou algum). Entretido com a minha leitura nem vi o tempo passar, mas percebi que ninguém tava sendo atendido. Carlos continuava ali de pé no balcão e mais pessoas chegavam. Resolvi encostar no balcão pra ver o movimento e tudo mais.


- Sabe o que precisa pra melhorar isso daqui? - perguntou Carlos.
- Trabalhar com metas de produtividade - respondi.
- Esse é o segundo passo. Primeiro tem que acabar com as prerrogativas dos juízes como, por exemplo, a vitaliciedade. Eles sabem que nunca vão ser demitidos e sabem também que vão ganhar todo mês o mesmo salário, seja trabalhando muito ou pouco.
- É verdade. Aliás, cadê os funcionários daqui?
- Não sei.

Dei uma olhada pra dentro do cartório e, de fato, não havia ninguém. Eles tinham sumido. Provavelmente estavam fazendo uma orgia satânica num quarto escuro que tinha que ser feita especificamente naquele horário e, por isso, não podiam atender ninguém. Se não for isso, só podiam estar fumando crack no banheiro. Claro. Se eu conseguisse encontrá-los e fotografar, poderia vender pra algum jornal, o que daria uma grande matéria. A manchete seria: "SERVIDORES PÚBLICOS SÃO PEGOS COMENDO CABEÇAS DE FETOS HUMANOS EM RITUAL SATÂNICO". Na matéria também teria como legenda na foto das drogas "Junto com eles foram encontradas cinquenta e sete pedras de crack".

Tive um lapso de atitude, atravessei o balcão e fui adentrando no cartório. Havia computadores ligados nas mesas. Olhei pro lado direito e vi um grupo de cinco caras de paletó e gravata com processos nas mãos discutindo algo baixinho. Continuei avançando, parei num bebedouro e bebi água. Na minha frente vi uma sala escrito "arquivo". Nela havia centenas de pastas que continham uma numeração e mais centenas de processos. "Bom, talvez aqui eu ache o que eu tô procurando", pensei. Comecei a procurar, mas no mesmo instante apareceu um funcionário.

- Doutor, o senhor não pode entrar aqui.
- Por que?
- Se o juiz te vê aqui, você nunca vai ganhar um processo com ele.
- Que piada.

Voltei pra fora do cartório, de frente ao balcão. Pelo menos havia um funcionário que não tava fazendo ritual satânico. Deve ser evangélico ou católico. Ou talvez não goste de cabeças de fetos humanos e prefira ratos. Vai ver não gosta de fumar crack com os colegas de trabalho e prefira fumar sozinho no mato. Ele estava atendendo no balcão "Número noventa e oito!", gritou. Um cara moreno foi até lá. "Acho que não vai dar tempo", pensei. Já eram cinco horas. Os cartórios fechavam às seis. Liguei pro escritório.

- Alô
- Oi.
- É Márcio. Tô avisando que talvez não dê pra ver o processo.
- Por que?
- Os funcionários sumiram.
- Tudo bem.
- Vou ficar mais meia hora aqui e depois caio fora.
- Certo.

Voltei pra trigésima vara cível.

Continua...

Um comentário:

Rodrigo A. disse...

Eu sempre me deparo com usuários de crack nos lugares também, me identifiquei com o grande escritor autor desse texto.