domingo, 29 de agosto de 2010

A Casa Caiu: e Agora?

A vida de um usuário de drogas é muito difícil nestes tempos de proibição. Para usar determinadas substâncias, tão importante quanto saber lidar com a criminalidade é também saber lidar com aqueles designados pelo Estado para aplicar e fazer seguir a lei - que nas horas vagas também podem praticar crimes. Quando se é um consumidor contumaz de substâncias ilícitas é preciso estar preparado para rodar a qualquer momento. Esse momento pode não chegar nunca, o que é ótimo, mas é um risco que se corre ao se expor dessa forma. Enquanto houver um flagrante no bolso é preciso se manter ligado. Como estamos falando de seres humanos sempre rola uma distração, um vacilo, uma moscação. Pode acontecer de alguém caguetar e podemos até ter uma abordagem sagaz dos fardados. Fato é que um dia a casa pode cair.

Hoje a legislação é bastante tranquila em comparação ao que era há alguns anos atrás. As penas para quem é pego com pequena quantidade para consumo pessoal estão no artigo 28 da lei 11343/07 e são: (I) uma advertência sobre os efeitos das drogas, algo aparentemente bizarro, afinal quem sabe mais sobre os efeito das drogas do que a própria pessoa que as consome? Um promotor de justiça?; (II) prestação de serviços à comunidade, que nos juizados criminais de Salvador podem ser pagamento de cestas básicas ou comparecimento durante alguns dias numa das creches que eles indicam; (III) medida educativa de comparecimento a programa ou curso educativo, o famigerado CAPS - Centro de Apoio Psicossocial, onde o sujeito participa de uma reunião com outras pessoas que também rodaram para contarem suas experiências.

O procedimento é simples, sequer é preciso constituir advogado, não se fica com "ficha suja" e a audiência não dura nem vinte minutos. Segue abaixo todos os passos a serem seguidos.

1 - A abordagem policial. Esse é o momento mais difícil de todos. Não adianta querer conversar com eles, nem convencê-los de que esse é um victimless crime. Além de possuírem cognição limitadíssima aliada com uma pitadinha de mau caráter misturado com sangue no olho, o trabalho deles é justamente conduzir o cidadão para a delegacia e lavrar o termo circunstanciado. É o que põe comida no prato deles. Não proponha suborno. Caso eles venham com a proposta analise se vale a pena. Um celular a mais ou a menos talvez não faça muita diferença. Duzentos reais a menos. Isso vai de cada um. É algo que elimina todas as etapas seguintes.

2 - Não conseguiu subornar, é hora de ser conduzido. Esse é o momento da exposição ao escárnio, à galhofa dos sádicos e desinformados en passant. Dentro da viatura ou caminhando com as mãos para trás o importante é não ser reconhecido por quem estiver vendo. A polícia da minha cidade costuma aproveitar esse momento para exercitar seus braços numa distribuição gratuita de violência que lhes causa prazer orgasmático. Tente se manter calado o tempo todo. Só fale se for perguntado e nada de gracinhas ou discurso político, nem de dizer que estuda e trabalha, que é honesto, que cumpre suas obrigações, que é filho de não sei quem. Isso só pode piorar o ânimo duzômi.

3 - Na delegacia será lavrado um termo circunstanciado. É um documento que narra os fatos ocorridos que servirá para acusar. O sujeito lê, assina e é liberado.

4 - Passados alguns meses o usuário receberá em sua residência uma notificação judicial chamando-o para comparecer à audiência. Mora com os pais? Caretas? Eles não sabem de nada até então? Eles que pegaram a notificação? Isso pode causar algumas horas de tensão e até choro. Aqui vale a pena manter a cabeça no lugar (aliás, é fundamental manter calma e racionalidade durante todo esse processo) e explicar que não vai pegar nada, não vai ter ficha suja, não vai precisar gastar dinheiro contratando advogado (só se quiser) etc. e tal. Quando se mora em prédio é ainda pior porque o porteiro é que vai pegar esse convite. Pra garantir diga aos porteiros que não assinem nada no seu nome.

5 - Na audiência é feita a proposta de conciliação pelo membro do Ministério Público. É a transação penal. Em tese trata-se de um acordo entre o usuário e o Estado. O indivíduo então aceita a proposta e vai para casa. Não aceitar a proposta acarreta em processo. Teoricamente até aqui ainda não houve processo, mas procedimento especial. Nesse caso, uma das consequencias de ser processado criminalmente é o problema da ficha suja e aí o cara não pode fazer concurso público, por exemplo, além de outras privações. A transação penal é, portanto, bilateral só na teoria, o que é péssimo num Estado de Direito.

6 - Cumprida a pena, é enviado um ofício ao Juizado e o Juiz, pelo menos na Bahia, só nesse momento homologa a transação penal. Ocorre que há uma lacuna na lei que não diz como proceder caso não se cumpra a transação penal e então criaram esse artifício. Cada juizado faz de um jeito. Isso tem gerado muita discussão e aqui não é o espaço adequado para isso. Dá pra perceber que todo o procedimento foi mal elaborado pelos legisladores.

7 - Pronto? Liberdade? Nem tanta. A lei estabelece que a transação penal só poderá ser feita de novo depois de cinco anos, então é bom ficar esperto durante esse tempo. Só se drogar em casa de preferência.

8 - Esse crime prescreve em dois anos, ou seja, a pretensão punitiva do Estado se extingue no prazo de dois anos contados da data do fato. Dois anos passam rápido. Uma estratégia é confiar na morosidade da justiça. Não ir às audiências, não cumprir a transação penal, mudar de cidade e tudo que dificulte a atuação jurisdicional é válido, mas não é recomendado.

Espero ter ajudado. Andem sempre alerta, drogadinhos. Saber dispensar uma ponta não é viadagem, mas uma virtude.

Um comentário:

Lorena disse...

isso foi uma aula